1 de março de 2015

de fenecos, raposas, rosas, amantes e esposas


como se sabe, exupéry transfigurou vários elementos reais e biográficos para compor a alegoria do pequeno príncipe. um dos mais destacados é a raposa. a certa altura do livro, o principezinho critica o desenho da raposinha feito pelo narrador, alterego do autor. diz ele: mas ela tem as orelhas compridas demais!



na verdade, o desenho do narrador/autor mostra um feneco, um pequeno raposinho do deserto que saint-exupéry viu numa de suas andanças/voanças saarianas e até tentou domesticar (na mais explícita antecipação da domesticação da raposa feita pelo pequeno príncipe).



havia saint-exupéry comentado sobre o feneco, em terra dos homens:
Mon fénech ne s’arrête pas à tous les arbustes. Il en est, chargés d’escargots, qu’il dédaigne. Il en est dont il fait le tour avec une visible circonspection. Il en est qu’il aborde, mais sans les ravager. Il en retire deux ou trois coquilles, puis il change de restaurant. 
Joue-t-il à ne pas apaiser sa faim d’un seul coup, pour prendre un plaisir plus durable à sa promenade matinale ? Je ne le crois pas. Son jeu coïncide trop bien avec une tactique indispensable. Si le fénech se rassasiait des produits du premier arbuste, il le dépouillerait, en deux ou trois repas, de sa charge vivante. Et ainsi, d’arbuste en arbuste, il anéantirait son élevage. Mais le fénech se garde bien de gêner l'ensemencement. Non seulement il s’adresse, pour un seul repas, à une centaine de ces touffes brunes, mais il ne prélève jamais deux coquilles voisines sur la même branche. 
Tout se passe comme s’il avait la conscience du risque. S’il se rassasiait sans précaution, il n’y aurait plus d’escargots. S’il n’y avait point d’escargots, il n'y aurait point de fénechs.

essa sabedoria natural do feneco é antropomorfizada na raposa do livro. e não são conselhos de alimentação autossustentável - embora, metaforicamente, talvez também o possam ser. mas, atendo-nos mais à letra, são conselhos sentimentais, existenciais que saint-exupéry põe na boca da sábia raposinha-feneco.

os sábios conselhos que o animalzinho ministra são as recomendações de silvia hamilton reinhardt, amiga e amante de saint-exupéry já citada aqui, a quem ele recorria em suas fases conjugais mais inóspitas ou turbulentas. é silvia quem lhe diz e mostra que, entre tantos casos e romances extraconjugais de saint-exupéry, é sempre e apenas consuelo seu verdadeiro amor ("A Rosa" de seu lar, que se diferencia de todas as outras "rosas comuns" que o PP vê num jardim público, em referência aos múltiplos casos extraconjugais de saint-exupéry) e a quem saint-exupéry sempre volta e a quem o pequeno príncipe quer e deve voltar. [aqui, diga-se de passagem, o nexo para esse "dever voltar" é dado pelo senso de responsabilidade que lhe incute, uma vez mais, a raposinha-feneco: retornarei ao tema.]

é ainda silvia quem teria dito a frase "não se vê bem senão com o coração", que abriu caminho no livro, sempre na voz da raposa amiga e conselheira, e que se tornou parte de uma das máximas mais celebradas da obra.

parecem-me inegáveis, nesse amálgama entre o feneco do deserto líbio que saint-exupéry tentou domesticar e sua amiga nova-iorquina, porto seguro, ombro leal e coração acolhedor, os traços que vêm a compor a raposa amansada e afeiçoada pelo PP. o que vem primeiro, a meu ver, em termos de conteúdo, é a sabedoria da amiga, quase que sua consultora sentimental; o animal em que ele a encarnou, creio eu, veio por extensão e associação. e assim se criou a imagem da raposa que o PP encontra em suas andanças pela terra (que são, aliás, mesmo em termos biográficos, ao mesmo tempo reais e metafóricas).