3 de março de 2015

a dedicatória



le petit prince é dedicado a léon werth. uma figura e tanto: saint-exupéry diz na dedicatória que werth, seu melhor amigo, estava solitário, passando frio e fome: com efeito, como membro da resistência francesa, werth havia se refugiado nos montes jura, em situação bastante difícil. para quem se interessar, não faltam materiais na internet sobre ele.


2 de março de 2015

masculino / feminino II


em masculino / feminino, aqui, eu comentava a (quase) inevitável feminização do universo tão masculino do PP, em sua tradução para o português. a propósito dessa mesma questão da diferença de gêneros no francês e no português, eis mais um ótimo texto de ivone benedetti, também tradutora do PP, aqui.



1 de março de 2015

de fenecos, raposas, rosas, amantes e esposas


como se sabe, exupéry transfigurou vários elementos reais e biográficos para compor a alegoria do pequeno príncipe. um dos mais destacados é a raposa. a certa altura do livro, o principezinho critica o desenho da raposinha feito pelo narrador, alterego do autor. diz ele: mas ela tem as orelhas compridas demais!



na verdade, o desenho do narrador/autor mostra um feneco, um pequeno raposinho do deserto que saint-exupéry viu numa de suas andanças/voanças saarianas e até tentou domesticar (na mais explícita antecipação da domesticação da raposa feita pelo pequeno príncipe).



havia saint-exupéry comentado sobre o feneco, em terra dos homens:
Mon fénech ne s’arrête pas à tous les arbustes. Il en est, chargés d’escargots, qu’il dédaigne. Il en est dont il fait le tour avec une visible circonspection. Il en est qu’il aborde, mais sans les ravager. Il en retire deux ou trois coquilles, puis il change de restaurant. 
Joue-t-il à ne pas apaiser sa faim d’un seul coup, pour prendre un plaisir plus durable à sa promenade matinale ? Je ne le crois pas. Son jeu coïncide trop bien avec une tactique indispensable. Si le fénech se rassasiait des produits du premier arbuste, il le dépouillerait, en deux ou trois repas, de sa charge vivante. Et ainsi, d’arbuste en arbuste, il anéantirait son élevage. Mais le fénech se garde bien de gêner l'ensemencement. Non seulement il s’adresse, pour un seul repas, à une centaine de ces touffes brunes, mais il ne prélève jamais deux coquilles voisines sur la même branche. 
Tout se passe comme s’il avait la conscience du risque. S’il se rassasiait sans précaution, il n’y aurait plus d’escargots. S’il n’y avait point d’escargots, il n'y aurait point de fénechs.

essa sabedoria natural do feneco é antropomorfizada na raposa do livro. e não são conselhos de alimentação autossustentável - embora, metaforicamente, talvez também o possam ser. mas, atendo-nos mais à letra, são conselhos sentimentais, existenciais que saint-exupéry põe na boca da sábia raposinha-feneco.

os sábios conselhos que o animalzinho ministra são as recomendações de silvia hamilton reinhardt, amiga e amante de saint-exupéry já citada aqui, a quem ele recorria em suas fases conjugais mais inóspitas ou turbulentas. é silvia quem lhe diz e mostra que, entre tantos casos e romances extraconjugais de saint-exupéry, é sempre e apenas consuelo seu verdadeiro amor ("A Rosa" de seu lar, que se diferencia de todas as outras "rosas comuns" que o PP vê num jardim público, em referência aos múltiplos casos extraconjugais de saint-exupéry) e a quem saint-exupéry sempre volta e a quem o pequeno príncipe quer e deve voltar. [aqui, diga-se de passagem, o nexo para esse "dever voltar" é dado pelo senso de responsabilidade que lhe incute, uma vez mais, a raposinha-feneco: retornarei ao tema.]

é ainda silvia quem teria dito a frase "não se vê bem senão com o coração", que abriu caminho no livro, sempre na voz da raposa amiga e conselheira, e que se tornou parte de uma das máximas mais celebradas da obra.

parecem-me inegáveis, nesse amálgama entre o feneco do deserto líbio que saint-exupéry tentou domesticar e sua amiga nova-iorquina, porto seguro, ombro leal e coração acolhedor, os traços que vêm a compor a raposa amansada e afeiçoada pelo PP. o que vem primeiro, a meu ver, em termos de conteúdo, é a sabedoria da amiga, quase que sua consultora sentimental; o animal em que ele a encarnou, creio eu, veio por extensão e associação. e assim se criou a imagem da raposa que o PP encontra em suas andanças pela terra (que são, aliás, mesmo em termos biográficos, ao mesmo tempo reais e metafóricas).


os baobás


desnecessário dizer, mas apenas para ficar registrado: a imagem do baobá, cujos brotos infestam constantemente o planeta do PP e que ele precisa erradicar diariamente, é em geral interpretada como metáfora do nazismo.




como, quando e por que o tradutor para e vai tomar um café


uma complicação muito bem exposta por ivone c. benedetti, aqui.


- mas isso não é um mouton, é um bélier!

a solução excelente da tradutora, por outro lado, reforça a feminização do universo tão masculino da obra, a que somos obrigados no português, como comentei aqui. à serpente e à raposa, soma-se agora a ovelha. 


B-612


ao que consta, o nome do asteroide onde vivia o PP, B-612, inicialmente citado no capítulo 4, inspira-se no número de registro de um dos aviões do correio aéreo que saint-exupéry pilotava, o A-612.

o "ditador turco" citado no mesmo capítulo é atatürk, responsável pela modernização e ocidentalização da turquia nos anos 1920, inclusive com a chamada "lei do chapéu" (1925), isto é, a abolição do uso do fez e demais artigos da indumentária tradicional e a substituição por trajes ocidentais.

sobre uma possível aproximação entre os vários asteroides visitados pelo PP em capítulos subsequentes e os asteroides de mesma numeração descobertos entre 1892 e 1910, ver aqui.



trecho comparado


J'ai ainsi vécu seul, sans personne avec qui parler véritablement, jusqu'à une panne dans le désert du Sahara, il y a six ans. Quelque chose s'était cassé dans mon moteur. Et comme je n'avais avec moi ni méchanicien, ni passagers, je me préparai à essayer de réussir, tout seul, une réparation difficile. C'était pour moi une question de vie ou de mort. J'avais à peine de l'eau à boire pour huit jours.

Vivi, portanto só, sem amigo com quem pudesse realmente conversar, até o dia, cerca de seis anos atrás, em que tive uma pane no deserto do Saara. Alguma coisa se quebrara no motor. E como não tinha comigo mecânico ou passageiro, preparei-me para empreender sozinho o difícil conserto. Era, para mim, questão de vida ou de morte. Só dava para oito dias a água que eu tinha. (Dom Marcos Barbosa)

Vivi, portanto só, sem amigo com quem pudesse realmente conversar, até o dia, cerca de seis anos atrás, em que tive uma pane no deserto do Saara. E como não tinha comigo mecânico ou passageiro, preparei-me para empreender sozinho o difícil conserto. Era, para mim, questão de vida ou de morte. Só dava para oito dias a água que eu tinha. (Vinna Mara Fonseca - ?)

Por isso mesmo, vivi sozinho, sem ter com quem de fato conversar, até meu avião sofrer uma pane no deserto do Saara, há seis anos. Alguma coisa tinha quebrado no motor. E como não levava comigo nem mecânico nem passageiros, tentei fazer sozinho aquele conserto difícil. Era uma questão de vida ou morte. A água que tinha para beber dava para apenas oito dias. (Ferreira Gullar)

Assim, vivi sozinho, sem ninguém para conversar de verdade, até que me ocorreu uma pane no deserto do Saara, há seis anos. Alguma coisa se avariou no motor do meu avião. E, como eu não tinha comigo nem mecânico nem passageiros, preparei-me para tentar, sozinho, fazer um conserto difícil. Para mim, era questão de vida ou morte. Minha água potável mal dava para oito dias (Ivone C. Benedetti)

Fiquei muito sozinho, sem ter quase ninguém com quem conversar, até que, há seis anos, sofri uma pane que me obrigou a fazer um pouso de emergência, no deserto do Saara. Alguma coisa havia avariado o motor de meu avião. Como não viajava comigo nem mecânico nem passageiro, preparei-me para enfrentar o desafio de fazer um conserto complicado. Era, para mim, questão de vida ou morte. A água que eu tinha para beber dava apenas para mais oito dias. (Frei Betto)

Assim, vivi sozinho, sem ninguém com quem falar verdadeiramente, até ocorrer uma falha mecânica no meu avião, no deserto do Saara, há aproximadamente seis anos. Algo quebrou no motor. E como eu não tinha comigo nem mecânico nem passageiros, me preparei para tentar, sozinho, fazer um difícil conserto. Para mim, era uma questão de vida ou morte. Eu tinha água para beber o suficiente apenas para oito dias. (Isolina Bresolin Vianna)

[não tive acesso à tradução de Rafael Arrais.]



masculino / feminino


a tradução do PP não é, em princípio, nada de estrondosamente difícil. há algumas peculiaridades mais complicadazinhas - como o verbo apprivoiser, que citei aqui, e outras que citarei adiante.

mas há, sim, uma peculiaridade realmente intransponível, e não de pequena monta. trata-se da própria concepção de fundo. explico-me.

o universo de le petit prince é essencialmente, para não dizer exclusivamente, masculino. o narrador, o protagonista, os seres vegetais e animais, as figuras-tipo dos vários planetas são do sexo (e do gênero gramatical) masculino. o único ser feminino é a a rosa, ser frágil e delicado que demanda proteção, eixo das atenções e preocupações do pequeno príncipe.

porém, em português, le serpent boa e le serpent são femininos, assim como le renard e les papillons. o pequeno príncipe então fica rodeado de outros seres femininos, de papel essencial na narrativa: justamente a raposa que lhe permite enxergar seu amor pela rosa e a serpente que lhe permite a viagem de volta ao lar.

na tradução, é claro que, no limite, poderíamos forçar o uso de algum termo masculino (ofídio? raposinho?). todavia, o preço de perder a simplicidade do termo mais corrente é alto e, ainda assim, nada garantiria que o enquadramento masculino ganhasse a nitidez explícita e decisiva que tem no original.

nesse sentido, torna-se quase inevitável que a transposição do texto resulte em certo apagamento dos papéis. dilui-se o contraste masculino/feminino, descentralizam-se as posições.